domingo, 14 de fevereiro de 2010

Vacuidade e impermanência nas relações

Por: Gustavo Gitti
O ser que bate a porta na sua cara é o mesmo que depois lhe envia um recado: “Dança comigo?”. Isso se chama impermanência. Chamar a pessoa responsável pelos seus maiores machucados e sofrimentos para morar com você. Isso é vacuidade.

Ano passado fui ver 5×2 (aqui ficou O Amor em Cinco Tempos), de François Ozon. Contado de trás pra frente, a história flui naturalmente como se não houvesse um roteiro nem um diretor. É direta, sem paleativos, mas sem ser niilista ou pessimista (não é otimista tampouco). É uma lição dura essa, a impermanência. Em um momento, vemos uma cena linda de um casal dançando colado. Em outra, eles se atacam como se não se conhecessem. Não há uma cena sequer no filme no qual eles aparecem verdadeiramente felizes e abertos. Há sempre uma ansiedade, uma contração melancólica. Eles nunca estão realmente acordados e vão batendo cabeça do começo ao fim. Em maior ou menor grau de confusão, é exatamente esta a nossa história. Vivemos insistindo na crença de que algumas coisas são verdadeiramente estáveis e nossa ansiedade surge daí: no fundo, sabemos que nada é tão concreto e eterno quanto parece.

Ao pararmos de ignorar a impermanência e nos engajarmos em sua compreensão, podemos cair em dois extremos de sofrimento e frustração. No primeiro, o niilismo, desistimos de dar significado às coisas. Se tudo eventualmente acabará, qual o sentido em fazer algo positivo ou por que não matar alguém? No segundo, saímos desesperadamente para aproveitar todos os prazeres possíveis enquanto nossa vida durar. O lema “Carpe diem” define a atitude que Alan Wallace chama de “esteira hedonista”.

Tanto no niilismo quanto no hedonismo, nossa mente opera do mesmo modo, buscando felicidade em seres, instituições, fenômenos e sensações instáveis. Assim que cada elemento no qual nos enganchamos flutua, nossa mente, energia e corpo flutam junto. E lá se vai nossa querida felicidade! A diferença é que no niilismo logo desistimos quando percebemos isso – pensando que essa operação é a nossa única, e falida, opção. E no hedonismo somos mais inteligentes ao usar a percepção da impermanência para pular de um prazer a outro antes que eles cessem. Em geral, somos niilistas ao acordar na segunda-feira e viramos hedonistas ao sair do trabalho na sexta-feira…

Se levarmos a visão da impermanência até o fim, retiraremos um a um os rótulos e placas (”Permanente e fonte autêntica de felicidade estável”) que colocamos em diversos seres e objetos ao nosso redor. Quando não sobrar mais nada, inevitavelmente vamos nos perguntar: “O que então é permanente? Onde eu coloco minhas placas?”. Assim começa nossa investigação da vacuidade, dos aspectos genuinamente transcendentais de nosso ser e principalmente dos outros seres. A impermanência de todos os fenômenos construídos esconde a natureza livre, luminosa e criativa da realidade.

Ao contrário do que pensamos, a impermanência não é só responsável pelas separações e trocas constantes de parceiros, mas igualmente pelas uniões duradouras. É porque mudamos constantemente que ficamos juntos. Ou seja, eu gosto do outro não precisamente pelo que ele é mas por aquilo nele que se transforma nos vários que o habitam. É a liberdade de um que se conecta com a liberdade do outro. Nós amamos a ausência de definição do outro, não suas características marcadas e consolidadas. Não há amor na rigidez.

Os ensinamentos budistas conferem um sentido preciso ao conceito de vacuidade: ausência de existência ou essência inerente. As coisas não existem “lá fora” nelas mesmas, seu significado não é pré-definido e elas não possuem uma essência nuclear. As coisas são insubstanciais, como nuvens oníricas. Se assim não fosse, a impermanência seria impossível e estaríamos presos em um mundo totalmente pré-configurado. O fato da transitoriedade aponta para a vacuidade (a ausência de substancialidade de todos os fenômenos e seres) enquanto que a vacuidade é a condição de possibilidade da impermanência.

Podemos, portanto, dispensar a impermanência e ir direto ao insight da vacuidade. Para que esperar 20 anos para que uma relação mude? Se ela mudará em 20 anos, isso significa que neste exato momento a liberdade para isso já está presente. Essa compreensão acelera o tempo. Vacuidade é impermanência em um flash: 20 anos em um segundo. Ou ainda: para que trocar de parceiro se o atual não é definido e pode renascer de uma hora para outra?

Somente o entendimento da impermanência é pouco. Às vezes ele nos libera do sofrimento imediato por alguma situação (”isso passa”, lembramos), mas nem sempre gostamos de esperar. Se a complicação parece irreversível, logo começamos a pensar no divórcio. Porque a impermanência perde para os nossos impulsos, o remédio tem de ser mais forte. Somente a compreensão da vacuidade tem o poder de alterar essa configuração. E enfim vemos a liberdade do outro, não suas prisões e obstáculos atuais das quais estamos tentando fugir.

Vacuidade, pois o outro não existe nele mesmo, com uma essência instalada em seu interior. Ele nasce a cada momento para nosso olhar. Podemos enjaulá-lo (”ele é assim mesmo”) e reagirmos pelas operações usuais de gostar, não gostar e sentir indiferença. Sentiremos apego e desejo pelo que gostamos nele, aversão e raiva pelo que não gostamos e seremos cegos às partes do outro intocadas pela nossa indiferença. Nessa relação, os meus condicionamentos se engatam nos condicionamentos do outro. Minha teimosia ama a falta de argumentação do outro. Meu orgulho ama o complexo de inferioridade do outro. Esse conjunto de arpões constitui um casamento entre carências e medos. É por isso que aqui o ódio está a um passo do amor, como ensina a sabedoria popular: minha teimosia o ama enquanto ele não a confronta, meu orgulho o ama enquanto ele não o destrói, meu medo o ama enquanto ele me mantém segura e confortável. Ficamos trancados um ao outro em uma prisão que nos aquece no início mas que ficará cada vez mais fria e dolorosa com a ação implacável dos senhores da impermanência.

Reconhecendo vacuidade e impermanência, podemos deixar de congelar nosso parceiro. Podemos amar sua liberdade com nossa liberdade. Ele não é “assim mesmo”. Ele pode mudar a qualquer momento. Para criar e cultivar esse espaço, lembre-se que as pessoas reagem de modo diferente de acordo com o ambiente na qual se encontram. Se você estiver em um local sujo, a probabilidade de você jogar mais lixo no chão é grande, ainda que você não possua esse hábito. Nossa presença configura uma matriz de possibilidades de ação do outro, um leque de identidades que podem surgir, de personagens que o outro pode atuar. Nós podemos restringir as emoções, pensamentos e movimentos corporais do outro somente com nossos olhos! Mas nós podemos ampliá-lo, expandir seu corpo, abrir espaço para que conosco ele seja algo que nunca teve chance de ser.

Amar uma pessoa considerada “tímida” é, em um só movimento, acolher sua timidez e sustentar uma flexibilidade para que ela possa não ser nada tímida com você. Ao fazer isso, ela naturalmente sentirá que tem a liberdade de ser ou não tímida com os outros. Ela não é sua timidez, mas a liberdade criativa de poder ou não manifestá-la. Por desvincular nosso ser de nossos condicionamentos, uma breve relação virtuosa consegue liberar incontáveis relações viciadas. Anos de aprisionamento podem se dissolver com apenas um olhar de espacialidade.

Não precisamos esperar sentados pela impermanência. Aguardar o dia em que nossas identidades sejam trocadas, que nossas relações problemáticas acabem e nossas experiências se modifiquem. Não é necessário sequer esperar pela mudança dos outros. Basta que simulemos a impermanência, que nosso olhar comprima 40 anos em um segundo. Afinal, desde sempre fomos atraídos por aqueles que nos oferecem esse espaço de podermos ser diferentes daquilo que pensamos ser, que nos fizeram ser, dos personagens que cansamos de encenar.

Na verdade, nós não amamos as várias identidades impermanentes que surgem ao longo do tempo em nosso parceiro. O processo pode assim parecer, mas o que nos atrai é a vacuidade do outro, não sua impermanência. O “amor em cinco tempos” é uma farsa condenada ao fracasso. O amor genuíno não existe entre identidades temporais, mas entre vacuidades – o que o torna verdadeiramente impessoal e atemporal.

Como eu dizia, convidei para morar comigo a pessoa responsável pelos meus maiores machucados e sofrimentos. No momento em que ela entrou em casa, dava para sentir a tensão entre impermanência e vacuidade, identidades e liberdades, fixações e espaços, passado e futuro. E então ela deslizou – suspensa, sem rastros – e começou a dançar comigo ao redor de nossos medos e carências, seguindo o ensinamento de T.S. Eliot:

“At the still point of the turning world. Neither flesh nor fleshless;
Neither from nor towards; at the still point, there the dance is,
But neither arrest nor movement. And do not call it fixity,
Where past and future are gathered. Neither movement from nor towards,
Neither ascent nor decline. Except for the point, the still point,
There would be no dance, and there is only the dance.”

Nenhum comentário: